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Do glíter ao vírus

Atualizado: 8 de jan. de 2021

por Maraíza Labanca


Preciso dos versos como prova: estou viva ainda?

Assim se comunica o prisioneiro, batendo no muro para seu vizinho ouvir.

Marina Tsvetáieva, Vivendo sob o fogo


O carnaval aconteceu no Brasil há poucas semanas. Era tanta aglomeração, tantas fantasias, festas, máscaras, músicas, dança, beijos e abraços, sexo... mas um elemento mínimo parecia, metonimicamente, ser indicativo de tudo: o glíter. Não havia quem, tendo indo aos bloquinhos, não tivesse “contraído” glíter voluntária ou involuntariamente. Dizíamos, inclusive, que só seria possível remover todo o glíter do corpo e da casa no Natal ou no próximo carnaval. O glíter, de certa maneira, alude a todo o carnaval e, de certo modo, ao espírito considerado festivo, jocoso, “brilhoso” do brasileiro. Por mais que o tentemos remover, com durex, água, sabão e outros métodos, ele insiste em se espalhar e restar nos cantos da casa, no fundo das gavetas e nos cabelos. Lembro que, no trabalho, em atendimentos, dias depois do carnaval, pessoas me interrompiam e diziam que havia um glíter na minha pálpebra ou na minha bochecha, de que eu, meio constrangida, tentava me livrar.


Nesta semana, conversando por chamada de vídeo com uma amiga considerada um caso suspeito de corona, porque ela acaba de voltar dos EUA e apresenta sintomas da doença, vimos que ela tinha um glíter em seu rosto: “resto de carnaval” ainda hoje, 21 de março. Imagino, então, como seria se houvesse uma espécie de lente que permitisse ver o vírus, nas coisas e nas pessoas, no chão das ruas, como pontos luminosos, como glíter...


Bem, o inimigo é invisível a olhos nus; no entanto, suas consequências são tão drásticas que é impossível não vê-las. Se em tantas outras situações-limite escolhemos não ver para “seguir a vida”; não temos, nesse caso, a opção de não ver. Agora, é olhar ou olhar. E é interessante que também observemos o “vírus da linguagem”, o modo como abordamos o problema pela língua. Nunca se recomendou tanto que lavemos as mãos; nunca foi tão urgente que não “lavemos as mãos”. Não há como simplesmente “seguir a vida” como se nada estivesse acontecendo num momento em que tudo se interrompeu. Como seguir como se nada tivesse acontecendo se nossos fantasmas mais terríveis – a solidão, a miséria e a morte – exigem enfrentamento diário, exigem nosso olhar?


Tínhamos, por exemplo, no Brasil, um outro (dentre vários) inimigo invisível cujas consequências só seriam sentidas em longo prazo: o veneno dos agrotóxicos que passamos a consumir cada vez mais e todos os dias, nesse horrendo novo governo. Agora, nem sabemos se existirá “longo prazo”. E isso, ufa!, impede que continuemos denegando a morte, a verdade dos fatos, como o de que os modos de vida que até aqui desenvolvemos deram errado. Esses modos de vida estão nos matando, seja literalmente, seja porque nos tornam mortos em vida, como zumbis ocupados em produzir, acumular e depois descansar vendo série em casa. Isso já não é a morte em vida? O que sei é que ignorar o horror que já existia – e que agora apenas exige ser olhado a todo custo – me parecia, sim, uma espécie de morte em vida, ao menos do senso de humanidade em nós.


Lembro de um texto impactante da Clarice, o “Mineirinho”, que dizia do assombro de não nos assombrarmos diante da morte de um homem pela polícia com treze tiros, quando apenas um bastava. Diante dessa falta de assombro, ou de humanidade, a autora nos chamava, a todos, de “sonsos essenciais”. “Nós, os sonsos essenciais.” Fico pensando se continuaremos assim, “seguindo a vida” do mesmo jeito e nos sentindo falsamente seguros por um plano de saúde, um parceiro amoroso, uma casa, um dinheiro no banco. Falsamente seguros pela ideia burra de que aqueles que estão inseguros – o meio ambiente, os pobres, a floresta, os indígenas, a comunidade LGBTQIA+, os loucos, os idosos, os negros... – não fazem parte de nosso “aldeia” e de que, portanto, ninguém está seguro.


Continuaremos a acreditar nas fronteiras, a proteger só “os nossos”, sem ampliarmos o próprio conceito de família? Nesse momento tão radical, eu desejo que as pessoas não consigam mais não ver. Eu desejo que saibamos reinventar o conceito de hospitalidade. Que reinventemos todos os nossos modos de vida a partir de agora. Claro, há aqueles que estão loucos para “seguir a vida” bovina e medíocre de antes, retornar à falsa segurançazinha que torna sua existência mais suportável. Mas, diante desses que “lavam as mãos”, pode ser que insurjam aqueles que deneguem menos o óbvio.


Eu desejo que a assepsia a que somos obrigados agora, por uma questão comunitária, provoque o fim da assepsia antiga, que nos separava e só supostamente nos protegia do outro. Desejo que aqueles que têm acúmulo de dinheiro, distribuam-no, para além dos “seus”. Desejo, enfim, um tipo de solidariedade novo.


Penso que os lugares, isto é, até a nossa noção de espaço e de tempo já foi alterada. Algo no DNA das coisas... Fomos obrigadas a um confinamento dentro de um domingo eterno. Perdemos, com isso tudo, o direito de sermos “sonsos essenciais”? Tomara que sim.


A poesia de certa forma – até a arte como um todo – não nos deixa não ver. O texto de Clarice não nos deixa não ver. Ela joga em nossa cara o insustentável, o insuportável. Contudo, isso de nada vale se tratamos a poesia, e a arte como um todo, como uma espécie de hobby ou como algo de separado da vida. Não dá pra tratar a poesia como mais uma das instâncias de nossa produtividade, como trabalhar, fazer ginástica, assistir série.


Nem glíter, nem vírus. É bobo pensar que a alegria vencerá a morte. Nada vence a morte. Mas podemos torcer para que o senso de comunidade se espalhe, acordando nosso modo de estar no mundo. Uma ética. Para falar com Roland Barthes, em âmbito coletivo, a geração que abarca os nascidos pós-guerras aos nascidos no século XXI enfrenta o seu “meio do caminho da vida”, em que a morte se mostra como real e em que é preciso, de uma vez por todas, uma revirada na paisagem por demais familiar, criando um novo modo de escrever nossos desejos. Pois essa pode ser a nossa melhor chance, senão a última.


Essa guerra não tem nada a ver com o amor. Essa guerra tem tudo a ver com o amor. E lembrem-se: é outono por aqui. Aquela época em que é preciso um savoir faire com os restos.




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