por Rafaela Vianna
Sofia conhecia a rua, mas não o prédio. Foi preciso circular o quarteirão ao menos duas vezes para encontrá-lo — uma esquina.
Talvez tenha sido esse gesto que fundou o espanto. Percebeu o quarto de Catarina como se ele fosse já a sua morada: Sofia não sabia que existia esse gozo fora do texto.
repare: o susto atravessou o Atlântico
Isto era inédito para Sofia: confiar na própria fraqueza. Não precisou arranhar a superfície lisa do vaso até a rasura. Bastava procurá-la no chão do quarto de Catarina.
A primeira palavra do poema já estava rasurada.
era ela a mais bonita
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Catarina recebeu Sofia não como alguém com nome e sobrenome, mas como o próprio nome e sobrenome. Ela deixou que se expandisse — na escrita da outra — essa espécie de espanto.
Desenhar na borda de cadernos: ainda hoje. Distrair as mãos com um gesto circular.
Apaixonar-se por Sofia aconteceu no mesmo ritmo dos rabiscos na folha aberta por acaso.
como voltar para casa, como ir para a fogueira
Sentir na palma da mão o primeiro barulho do nascer do sol.
le soleil n’est qu’un bruit qui revient chaque matin
est-il un geste lâche, de toujours revenir?
De toda forma, não era mais necessária a coragem: Sofia sorria.
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altar (s.m): estrutura ger. elevada
Sofia caminhava como que pisoteando o tecido claro.
as histórias de amor mais bonitas nunca terminam perto da pedra usada para construir a casa
Sujar a bandeira: reduzir a casa ao grão.
Subir ao altar: escalar a pedra. Catarina sentia as mãos pesadas ao atravessar os olhos das testemunhas.
a ave que se sabe observada mas não interrompe a fabricação do ninho
Mas apenas elas viam, no gesto do metal que encontra o dedo, a arquitetura minuciosa da destruição da casa.
alguém que apanhasse as mãos da amada como se fossem de arroz
alguém que comesse esse arroz como se fosse o corpo dela
Elas esperaram. O amor estava escrito no último grão a cair da chuva.
Eurídice não se viraria no último degrau
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Esses fragmentos serão publicados em breve no livro Altar, de Rafaela Vianna, pela Cas'a edições, na coleção Líricas.
Imagem: Capa do livro Altar, desenvolvida pela artista gráfica Fernanda Gontijo