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Mathos, o inexistente

Atualizado: 30 de nov. de 2022

Por Rafael F. Atuati


Dentro do livro, Mathos começa a considerar que, talvez... pudesse escrever.


Comovido pelo fracasso da palavra que inventara, despossuído de seus efeitos, ele passa a escrever sem a pretensão que, furtivamente, habitava seus textos anteriores. Fizera uma espécie de luto daquela palavra cuja ausência, agora, lhe oferecia uma nova maneira de experimentar o desamparo e a solidão que acompanham o ato da escrita.


Ele cogita habitar frases mais longas, textos menos descontínuos, em que se poderia demorar um pouco mais entre os sinais de pontuação. Uma aposta, certamente.


Dentro do livro, Mathos sai a caminhar.


A cidade que aguarda seus passos é São Paulo, mas, enquanto caminha, pensa que bem poderia ser Buenos Aires, Paris, Caracas... Ao lugar onde se encontra a caminhar, importa menos um nome, uma história, alguma conjuntura política... são os detalhes que contam mais:


as calçadas de pedra, invariavelmente irregulares;

as fachadas dos edifícios antigos do centro da cidade;

as sombras da fileira de árvores que ladeiam avenidas como a São Luís;

o burburinho de vozes dos passantes que recobrem o sentido de suas conversas;

as escadas rolantes das estações de metrô;

o deslocamento dos automóveis e a região de penumbra típica do interior dos veículos;

a presença enigmática do sol a banhar com sua luz todas essas cenas: indiferente.


Dentro do livro, em meio às palavras... enquanto caminha, Mathos acolhe algo que o visita em um instante. Pensa que nomear isso que lhe aconteceu seria, imediatamente, perder o essencial dessa experiência. No entanto, a escrita lhe exige recorrer às palavras para dizer o já-perdido. E é exatamente assim que encontra uma nova palavra, que por ora será escrita, em respeito às normas gramaticais: japerdido; japerdida.


A experiência que afeta o japerdido Mathos, enquanto caminha por entre as sombras das árvores em uma avenida de São Paulo, lhe entrega o que gostaria de chamar de sua ... Reconhece que lhe agrada essa palavra. A repete: ... Pensa que seria impossível tanto defini-la como comunicá-la. ... seria algo que se produzira no corpo que perdera ao entrar no livro. Essa palavra lhe retira algo essencial, entregando-lhe uma ausência.


Dentro do livro, em meio às palavras, abrigando ..., o japerdido Mathos propõe-se continuar a escrever, auscultando as possibilidades da escrita. A decisão de iniciar uma segunda parte em um livro promovera um deslocamento em seu centro: o conto que marcava o meio do livro passa a ocupar a metade da primeira parte. Esse artifício, sem desconsiderar o que poderia estar determinado no processo de uma narrativa, poderia permitir um relançamento da questão que a anima; renovar a aposta; encontrar outras formas... de fracassar.


***


É tarde ainda; um calor ameno convida Mathos a prosseguir o incerto rumo que lhe propiciou a decisão de sair de casa sem nenhuma razão aparente. Sair, por sair. Talvez para sentir a luz que agora lhe chega do alto, aquece seu corpo, ilumina o pavimento que se oferece aos seus passos. Caminhar assim lhe permite perceber um pouco melhor sua respiração, o silêncio que habita os intervalos de seus pensamentos, a superfície das coisas e dos seres que passam... Mathos sabe que não pode permanecer sempre assim. Logo estará de volta à casa, aos livros, à escrita. Mas sabe também que, enquanto caminha suspendendo as preocupações cotidianas, cria uma espécie de fratura no tempo, um acesso sutil a uma outra temporalidade: sem tempo: sem ser.

Dura isso:


Mathos sabe que é pouco; mas se alguém viesse lhe perguntar sobre quais momentos ele gostaria de escrever um dia, talvez ele não duvidasse em escolher esses: os que se destacariam, sem se destacar, do fluxo dos dias, das noites, dos pensamentos. Instantes suspensos entre uma tarefa e outra em que outr’olhar se insinuaria, fazendo vacilar os propósitos que animam os dias, as noites, os pensamentos. Talvez, esse gosto lhe venha de longe, do mais longínquo; talvez. De um estado anterior... japerdido.


Enquanto cruza um viaduto, observando os carros passarem sob seus pés, sem que se dê conta, ou dando-se conta só depois, Mathos cede a algumas lembranças que às vezes o visitam, infiltrando-se nos vazios deixados pelo cansaço das palavras. Teria uns dez anos, estaria em um sítio de um amigo, no alto de uma pequena colina sob um céu noturno forrado de pontos cintilantes que o observam. Em algum momento, Mathos teria se escutado dizer, já não sabe se somente para si ou para alguém mais: quando crescer, vou ser escritor. Ele sorri, quase em deboche, ao recolher essa lembrança infantil; mas também se permite se expor à força de uma imagem que, embora beirando à caricatura, toca-lhe o corpo como poucas. Mathos aquiesce: escuta em silêncio as palavras que lhe ocorreram ao menino que fora.


As primeiras estrelas despontam no crepúsculo.


***


Esse fragmento compõe o livro Mathos, o inexistente, recentemente lançado pela Cas'a edições.


Imagem: Capa do livro, com ilustração de Renato Atuati e projeto gráfico de Fernanda Gontijo

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