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  • Espaço a'mais

Ermo

por Maraíza Labanca


Casou-se com uma mulher que levaria apenas uma flor. Ele gostou de vê-la com o vestido branco de renda e uma única flor no altar. Da sua família, contou-me, veio para a cerimônia a irmã mais velha, apenas.


Agora, reconheço nele algo que não se reconhece. Os olhos fundos, chupados para dentro, como se fugissem. Percebo que sempre, como o poeta, carregou um ermo nos olhos, um impensável ermo que nele põe ausência e medo. Têm cor de piscina – todas as pessoas diziam, ainda dizem. Foi assim que, quando nasci, construiu uma, para que nadássemos juntos. Usava um tampão nos ouvidos, porque a água invadia demais, dizia, ainda diz. E saltava na água fria, alheio na sua surdez, mergulhava fundo e, depois, irrompia com um sorriso.


Uma vez o vi chorando. Uma vez, apenas. Pois ninguém nunca o via chorando, ainda não o vê, nem nos filmes tristes a que assistíamos juntos nem nas tantas vezes em que a angústia invadiu a nossa casa. Tínhamos uma casa. E as casas, por vezes, são invadidas por um peso surdo de cujo fundo demoramos a sair. Mas sei que chorava. Sei que não era pouca a sua pena. Era no jardim que isso acontecia, junto às plantas, era ali que irrigava a sua solidão. Mal sabia, porém, que, escondendo o choro, parecia ainda mais frágil.


Eu vi o seu corpo minorar, eu vi a redução que o tempo operou sobre a sua estatura, sobre o seu peso quando pulava na piscina.


Chorava no jardim, o jardim a que me levava nos fins de tarde para ver a inflorescência das flores. Não me levava pela mão à biblioteca de velhos livros a que tão logo eu me entregaria, mas às flores. Torcia para que durassem e só podava cada galho quando já não restava nenhuma pétala suspensa sobre o antigo broto. Tentei dizer para fazer alguns cortes nos pés de rosas e nos outros, que cresciam desgovernadamente, com um jeito de abandono, estaturas diferentes, confundiam-se ao mato, a plantas que não davam flor. Recusava-se, de imediato, a fazer os cortes e a estetizar o jardim. E eu gostava de me sentar no degrau da escada que dava para as plantas e observar o regar das flores.


Vi-o chorar apenas quando se lembrou da antiga irmã que morrera, de que muito gostava, ainda gosta. Lembro que a sua voz falhou, mas tentou ainda salvar o gesto, até desistir de dizer algo. Ergueu os óculos e limpou os olhos, e eu nada fiz, porque nunca soube bem o alcance de um gesto, o alcance de um gesto sobre um rosto, eu e meu amor de bronze.


O ermo está maior hoje. Hoje já nem há mais a piscina, nem a casa, nem o jardim. Mas um colírio todas as noites, é caro – ele diz. Um colírio ao jeito de lágrima desprezado nos olhos antes de dormir. Antes chegava a dormir à meia noite, em função das aulas, não mais dorme. Por inumeráveis noites o esperei chegar, fingindo que estudava, para vê-lo uma vez mais; eu, com meu amor tímido, de bronze, de quem olha, de longe.


Casou-se com a mulher que entraria na igreja segurando uma única flor. Uma flor branca, apenas, que não segura mais. Casou-se, uns óculos fundo de garrafa, que ainda disfarçavam o ermo. A alegria com a vida que começava disfarçava a tristeza de fundo, que, com o tempo, mais se afundava, como se fugisse para um deserto de flores, onde dançasse. Mas ele nunca dançava. Valsou apenas, duas ou três vezes, por insistência da mulher que segurava uma flor. Valsou como se fugisse.


Acorda, hoje, às quatro, olha o dia, prepara um café demorado, parece cansado, mas há o assovio, sempre houve. Desconfio o que nele possa ser cansaço e alegria. Quem carrega um ermo não se adivinha. Ele assovia uma canção da Dóris Day de que tanto gostava, ainda gosta. Sua voz, suave, tem uma rouquidão de fundo que, às vezes, acho, só eu escuto, só eu escutava.


Antes era ele quem me acordava em dias de escola. Era ele também quem se punha aos pés da cama de minha irmã, que noites inteiras chorava, ainda chora. Mas ninguém via o quanto ele também chorava. Segurava a mão dela, eu via bem, segurava a mão dela com ternura e deixava que ela chorasse uma noite inteira. E depois, ia chorar no jardim, apenas ele, ali.


Nos feriados em que fazia muito calor, assistia à TV deitado no chão, os joelhos inclinados, as pernas muito finas, como as minhas, uma bermuda velha. Apenas. Era assim que lidava com o mormaço. Eu me deitava ao lado, como tantas vezes nos colocamos a sós, em companhia.


Meu pai tinha um silêncio de ermo, ainda tem, como se o agora escapasse pelas mãos, em uma energia digressiva ao jeito dos cães. Ressonava quando dormia, e era ele quem me acalmava nas noites em que acordei assustada com o mesmo sonho tantas vezes reeditado: a casa invadida de assalto, meu pai em perigo. Eu me sentava no chão, ao lado do seu lado, e ficava olhando, eu e meu amor de bronze, de quem olha, de longe.


Nunca leu uma história para que dormíssemos, mas me deu um jardim e uma piscina, onde saltávamos, ele sempre antes de mim. Não era ele quem preparava a comida, nem se importava com as minhas notas. Mas deitava-se, de olhos cerrados, ouvindo Verdi, e me contava as histórias das óperas e também de uma miserável infância num ermo maior que seu olho. Ele pequenininho sobre um cavalo, dividido entre a escola e a mãe amorosa. A pouca comida, a cobra que passava e seu medo confessado da tarde. Seus olhos poentes ao ritmo da tarde, uma luz de fundo de garrafa.


Cortava-se com tudo, ainda se corta. E cai muito, como se o chão se lhe fugisse; de repente, cai, rouco das pernas. E envergonha-se, como se tivesse sido flagrado chorando, menino de dentro do seu abandono. Esta poderia ser a sua palavra: apenas. Gostava de varandas e grandes áreas abertas, ainda gosta, coisas com promessa de horizonte.


Tratava mal o cachorro só na frente da gente, ainda trata, mas ama-o, adivinho, ama-o profundamente. Trocam seus ermos, talvez, quando passeiam juntos pela rua, ligados pela claudicância dos passos que erram querendo fugir. Mas ele tem medo das doenças do bicho como de si, agora que sua voz afina e seu sangue engrossa. Faz um regime mais rigoroso do que precisa e sente falta das flores, do jardim meio caótico que antes cultivava, não mais cultiva.


Desconfio de que ele todo é líquido, por isso apresenta-se a nós como se fugisse. Mas escolheu o nome das três filhas, chamou-lhes raiz. E sempre a dificuldade com a poda, a flor na ponta, a vontade de ficar sem o alheamento do ermo, que é a sua melhor parte. Uma parte, apenas. Uma partícula mínima que ninguém reconhece, nem domina, nem a mulher que segurava uma flor quando se casaram, porque o ermo põe, nele, uma medida de ausência que ninguém traduz. A água irrompe, o rio sem margens, uma caligrafia sonada.


Assoviou tantas vezes a canção da Dóris Day que me deixava triste, e isso era estar em casa. Acabei, então, eu mesma, crescendo com um ermo, não sei se nos olhos ou na voz. E o meu amor, que já era de longe, ganhou um jeito de inabalável distância. O ermo é o meu corpo, e ponho-me, ausente, aqui, com um termo: apenas. E poucos sabem que o meu silêncio tem a estatura do meu amor.


Uma vez pedi-lhe que me ajudasse na tradução de um poeta francês. Ele se sentou perto do jardim, pegou o caderno, ficou dias fazendo, afinando a delicadeza dos termos, e me entregou dizendo é isso o melhor que eu posso. Guardo ainda o rascunho, o gesto de uma delicadeza sonada, vertida, língua a língua, palavra a palavra, as pausas certas, o texto e seus pássaros.


Ainda acordo no meio das noites, assustada, ainda sofro os assaltos da angústia em noites surdas, e me ponho ao lado do seu lado, ponho-me ao lado do seu lado, como a palavra se coloca ao lado da palavra em um poema, como se pousássemos, na folha, algo que se pode quebrar a qualquer movimento brusco. E meu pai não era brusco nunca. Pétala a pétala, termo a termo, traduziu o poema, como se pousasse um bebê na cama, um bebê que dorme, cena poente, às seis da tarde, após muitas lágrimas. Pois havia uma pausa entre a gente, ainda há. Um vale entre dois ermos imensos, mas essa lonjura é minha maior proximidade.


Preservo o vale, preservo o ermo. E eles não se igualam, porque eu amo o declínio da tarde, embora também tenha crescido pouco para ficar mais perto do chão, das flores que caíam, ainda caem. Eu carrego a minha água, e atravessamos o deserto todos os dias, com ela, apenas ela, agora e depois.




Foto da autora, Bairro Santa Tereza, Belo Horizonte


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