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A dança

por Teresa Melo


dou por mim num lugar destes, e é quase verão.


o dia translúcido tem as sombras das frutas desenhadas no chão, e eu a mergulhar nele com os meus olhos de mística em curiosidade. cheguei a Santiago ontem à noite, depois de uma viagem de dez horas de autocarro – ou guagua, como dizem aqui. saí de Trinidad pelas seis da manhã, o ar ainda estava fresco e as ruas, vazias. eu que sabia pouco mais do que de mim e do que trazia, a mochila aos ombros e os calcanhares pelo asfalto sem custo para procurar. fui.

hoje vesti a saia azul e uma blusa branca encurtada em nó pelo umbigo. começo a crescer de novo, sinto o pássaro a acordar e estou debruçada no terraço de boca aberta para as montanhas. falo ao telefone com a minha mãe “cheguei bem”.

completamente entregue à função do primeiro café do dia e às superstições do Carpentier, passeio-me como gata em telhado alto. de repente, senti como todos os desejos maiúsculos sabiam dançar boleros e parei. foi assim, como se pousasse para um quadro, que o vi sentado no degrau da entrada de uma casa colonial verde-jade na Calle Enramadas. de frente um para o outro, o pássaro enorme robusto a estender-se agora nas suas asas debruadas pelo céu, o silêncio em riste vivo. peço-lhe para tirar os óculos de sol porque olhos que não veem, coração não sente – e também são espelhos e reflectem-nos ou multiplicam-nos, depende do que procuramos.

estamos no centro da cena.

dois pássaros tropicais eufóricos na forma como exibem a ostentação da dança. no pátio da casa de la trova, as veias salientes das pernas desenham a coreografia. cheira a penas, a tabaco bom, a estalar de lume, a brasa. sacodem-se os cabelos, encostam-se as testas, modelam-se as mãos na cintura em haste. ajusto a bainha da saia e tenho as veias do peito a rugirem alto.

donde estabas tu”, digo-lhe a mim no meu espanhol tacteante. adianta-se e tem na mão um copo com gelo, “te gusta el rum?”.

rio-me. “caramba!” irremediavelmente e posso passar milénios a aperfeiçoar-me sem nunca saber até onde me estendo.



Imagem: Veneración (1986), Belkins Ayon

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