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Cúmplices

por Rodrigo Bragamotta


Saiu com o passo apressado. Andava sempre assim. Nem percebia. Sentia apenas que, quanto mais aflita, mais rápido caminhava. Carregava, em um potinho branco, pedaços de si. Pensar isso a fez embrulhar o estômago. Acreditou que diminuiria seu mal-estar se esticasse o braço — afastando ao máximo o recipiente do seu corpo —, mas havia um limite.


Achou uma falta de consideração a clínica não ter enviado o exame diretamente para o laboratório, submetendo-a a isso. O laboratório não era longe, mas decidiu tomar um Uber para se livrar logo daquela situação.


Pensou em ligar para alguém, enviar uma mensagem de voz, escrita que fosse, para diluir a angústia que a tomava. Não conseguiu ninguém para acompanhá-la ao exame. A filha estava no trabalho e teria uma reunião importante. Descobriu que não tinha amigos. Não os construiu. Já estava separada há quase três décadas e resolvera se dedicar à educação da filha. Apenas isso.


Com os fragmentos da sua carne nas mãos, teve vontade que sua vida parasse um pouco. Parasse em um sentimento de sábado de manhã; com música, sofá da sala e xícara de café. Adorava a luz dos sábados. Mas, quando se vai em direção a um resultado de exame desses, é muito mais final de domingo que se sente.


Sempre achava que as coisas na sua vida eram mais difíceis que na dos outros. Se não eram, dava um jeito de as transformarem para assim serem, ou pelo menos demonstrar que eram. Tinha um constrangimento de ser feliz. Manifestar alegria era como sair de onde lhe era assegurado um olhar piedoso dos outros e, quem sabe, alguma ajuda.


Mandou uma mensagem para a filha, avisando que já tinha saído da clínica e estava em direção ao laboratório. A filha lhe respondeu com um ok! Graças a Deus terminou a reunião dela — pensou. O celular das duas apitava o dia inteiro. Era normal. Preenchiam suas vidas com os sinais sonoros dos seus telefones, bips que traziam mensagens, na maioria absoluta das vezes, desnecessárias. A felicidade dela era a da filha. A da filha, não sei o que era.


Nos compromissos sociais, e até nos familiares, combinavam sempre de chegar e sair juntas. Avulsas, não se sustentavam. Para essas ocasiões, tinham sempre um plano em mente. Versões, tramas, conluios as tiravam de lugares, as protegiam de compromissos, as poupavam de convites.


Recebeu uma nova mensagem da filha, perguntando se já tinha chegado ao laboratório. Respondeu que ainda estava no Uber, que já não funcionavam como antes, que tinha esperado treze minutos por ele.


Lembrou do último Natal em família. As duas combinaram de ir juntas, chegar mais tarde e levar, além do salpicão e os presentes para o amigo oculto que detestavam, a desculpa pronta para irem embora mais cedo. Tinham, também, um sinal combinado para lançar na hora certa. Eram precavidas.


Ao atravessar a rua, viu, do outro lado, a prima cuja felicidade a incomodava. Ficou perturbada com a possibilidade de aquela mulher tê-la visto carregando nas mãos a sua sentença. Achou muito providencial a pandemia e o uso das máscaras. Ela não a reconheceu. Mais uma troca de mensagens com a filha.


No casamento dessa prima, elas tiveram dificuldade em disfarçar o quanto estavam aflitas para debandar. Já chegaram ao evento com seus silenciosos olhares dissimulados. Preferiram viver isso a declinarem do convite.


Especializadas em “saídas à francesa”, orbitam a vida no limite do envolvimento com o outro. Comparsas, só se importam uma com a outra. Não notaram que há um desvio no que acreditam ser amor.


Ao chegar ao laboratório, já no balcão, enquanto entregava o frasco com aquele pouco de si, sentiu a mão da atendente tocar a sua — a recepcionista não notou. Neste instante, lembrou-se da filha com afeto — foi fugaz. Pensou em lhe enviar uma mensagem, mas desistiu.




Imagem: fotografia de Pereanu Sebastian

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