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filha

por Fernanda Leal



Era impossível ler o desejo que se alojava no silêncio materno. O silêncio acomodava a monstruosidade de algo inacessível. O desejo impegável da mãe fascinava Ana quando menina. Ela adorava brincar de caçar borboletas no quintal da casa da infância, a casa da avó. Pensava que, junto com as voadoras, quem sabe, o impegável seria capturado. Em sua inocência de criança, achava que se podia enganar o silêncio. Mas ela não fazia por mal, sabia que seu gesto insistente era apenas uma arte de criança.


As borboletas acabavam por vezes caindo na rede. Davam esperança de que um dia, naquela tela, naquela teia, poderia capturar a palavra perdida, escondida no silêncio da mãe.


O mesmo tentava fazer com o corpo que lhe parecia uma oferta de leitura. Nunca conseguia capturar o que o corpo fazia sem querer. Ana se encantava com o desenho que L imprimia no ar quando caminhava. Encantada com aquele corpo, arrebatada, chegava a sonhar que o corpo era seu. Quando acordada, não queria perder um único movimento. Movimento que tentava resgatar durante o período de sono. No sonho, Ana tinha a impressão de domínio sobre aquele corpo. Um corpo que falava uma língua que ela ansiava por aprender. Uma fala distante, mas familiar. Só o corpo numa dança própria, num ritmo jamais definitivo, eternamente evanescente. Ana intuía que naquele corpo ela encontraria a palavra.


Ela só queria que não amanhecesse o dia, que não chegasse a madrugada, que a luz da manhã não invadisse seu quarto, anunciando o fim do ballet e, com ele, o apagamento do corpo que ela queria seu. Ana queria permanecer no sonho do tempo da infância. E era para esse momento que ela retornava todos os dias. Queria se abrigar no compasso que o corpo no sonho realizava, sem pausa, sem ruptura, sem descanso. Continuar sonhando quem sabe permitiria um traçado preciso daquele corpo que a capturava, das palavras que ali habitavam. Palavras impronunciáveis. Os braços num movimento bailarino, as mãos por vezes tão desconectadas do tronco, as pernas ágeis e delicadas marcavam uma regularidade diversa de tudo o que Ana conhecia. E os pés deslizavam, quase como se estivessem escrevendo algo na areia da praia para tão logo ver o movimento das ondas levar embora o traçado, irrecuperável. Os pés caminhavam deixando as pegadas, como marcas na areia fofa, o registro do ir e vir de um corpo que se transformava, que se prolongava, que transbordava para além dele mesmo, para além do sonho de infância. Não havia limite para ele, para aquela dança. O chão firme sob os pés, ora descalços, ora calçados, se abria.


No sonho, vestígios de um corpo que se fragmentava, uma filha com predileção pelo inconstante. Sabia que ali no espaço entre, nas fissuras, no vazio que a dança do corpo produzia, habitava o enigma, a pergunta sem resposta, o impossível. O que não sabia era que um dia teria um menino e que esse menino aprenderia, assim como ela, a amar as bordas do infinito.


***


"filha" é um fragmento do romance Um nome para o silêncio, de Fernanda Leal, publicado recentemente pela Cas'a edições (www.casaedicoes.com).



Imagem: capa do livro Um nome para o silêncio, com ilustração de Tamires Z. Costa e arte gráfica de Fernanda Gontijo.

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