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O assombro do teatro

para o espetáculo Classe

por Maraíza Labanca


O que é assombroso no teatro é que ele não mente. O que é assombroso no teatro é que ele diz a verdade. Lembro-me, agora, do poema de Fernando Pessoa: “O poeta é um fingidor. Finge tão completamente que chega a fingir que é dor a dor que deveras sente”. O ator é um fingidor? Finge tão completamente que chega a fazer com que sintamos a dor que deveras sente. É o assombro da arte, mas que o teatro realiza ali completamente, no espaço circunscrito do palco, num espaço circunscrito de tempo, com poucos objetos, com pouco cenário – não é preciso muita coisa para que acreditemos nele, tão completamente! Ainda mais em momento como este, no Brasil, em um momento em que verdade e ficção, fato e fake news parecem se misturar. E a cultura – aquela para quem a ficção tem valor de verdade, não porque mente, mas porque nos lembra que só a invenção pode nos curar do fosso em que caímos, socialmente, politicamente, intelectualmente – anda tão maltratada por aqueles que a deveriam preservar. E essa invenção que o teatro traz nada tem a ver com a mentira, nem com o que se convencionou chamar de fake News, nem com o que – desde a linguagem ao comportamento mais vil – se convencionou importar, de novo, dos nossos vizinhos do norte – os EUA.


Mas o bom teatro sabe que é melhor nos avizinharmos dos pobres, dos marginais, dos nossos vizinhos do sul, dos que um dia foram arrasados por regimes autoritários numa época sombria que agora retorna. No espetáculo Classe, sob a direção de Sara Rojo, o texto, primorosamente escolhido, é de um autor chileno: Guillermo Calderón. O texto é um desabafo e um manifesto. O texto é um direito ao grito. O texto, minuciosamente pronunciado, gesticulado, não sem o sarcasmo das personagens que, ufa!, nos tiram da mediocridade das figuras sem nuances que nos governam, é um direito à rebeldia, à própria invenção. É, enfim, um direito a nossa humanidade em risco.


Pois é preciso que nos assombremos de novo, que saiamos de nossa anestesia, de nossa “vida bovina”, anêmica, cujos acontecimentos nos são impostos sem que nos sintamos capazes de nenhuma reação. Esse espetáculo é uma reação. Esse espetáculo é um acontecimento na cena da vida, na cena da cidade, um acontecimento capaz de romper nossa paralisia ante o horror. Sim, o horror agora está dado. Mas o espetáculo sacoleja tudo. O corpo do espectador não parece caber na cadeira, o teatro não parece caber no teatro. Se o bom livro é aquele que sai para fora de si, isso também deve valer para o teatro: a boa peça é aquela que parece sair do seu espaço circunscrito, contaminando os espaços à volta, provocando também uma extensão no tempo, um efeito a posteriori, um “ativo da dor”, como diria Barthes.


Assim, apesar de todo o pessimismo do professor, é o desejo o que esse personagem reacende em quem assiste. E o desejo é absolutamente insuportável para governos autoritários. A singularidade dos desejos. Temos, então, um espetáculo desejante. Saímos da peça com o coração em brasa. Com o olhar alargado. Com a inquietude viva de quem pensa. Pois o pensamento está a perder-se na anemia da vida cotidiana, na violência da vida em que a vida não vale nada. Mas Classe nos lembra: há ainda um aprendizado possível, exigente, urgente.


A peça é não só primorosamente cuidada esteticamente mas eticamente. No entanto, não há excessos; não há, por exemplo, nenhuma espécie de pirotecnia técnica, tecnológica, ilusionista – como tão em voga ultimamente. O cenário é simples, o figurino também. Tal minimalismo, contudo, não só não impede como intensifica as possibilidades da linguagem do teatro. Pois é o texto, a atuação e a dança dos corpos no palco o que ganha ênfase, o que nos arrebata e faz com que esqueçamos todo o resto. E, por outro lado, faz com que nos lembremos de todo o resto lá fora do teatro, faz com que nos lembremos quão desconfortável é nossa situação, na cadeira (pela passividade) e no quadro político-social atual (pelo mesmo motivo). Desconforto indesejável, é claro, mas necessário, impelente. Desconforto, enfim, que não pode ser denegado. Desconforto que pode transformar, só ele, o indesejável, pelo caminho do desejo. Por isso tudo e mais um pouco, digo que o espetáculo Classe faz mais do que o esperado: ele dignifica a linguagem do teatro – e, por extensão, da arte. E ele também nos diz: temos o direito ao assombro.


Um de meus incômodos ao acompanhar peças teatrais em Belo Horizonte sempre foi o fato de o texto – pela própria condição da linguagem teatral – ser quase sempre vociferado, num certo excesso constrangedor que comprometia o “pacto ficcional” entre mim – espectadora – e a história a que assistia. No teatro, não se pode “falar baixo”, é preciso projetar a voz, que vez ou outra me parecia “microfonada” demais, exagerada, fake. Em Classe, no entanto, redignificou-se, para mim, a linguagem do teatro, não porque falou baixo, mas porque soube gritar, porque soube, assim, deixar cair a verdade aos nossos pés. Colhi-a. Continuo colhendo-a. Porque essa peça pede um gesto a’mais, como quem diz: “colha essa verdade aos seus pés, e faça algo com ela”. “Levante-a como quem levanta um ramo de oliveira”. Então, pude sair daquela sala como quem sai com esse problema novo – e muito antigo –, como quem sai de um estado de apatia que só reforça o estado das coisas. Saí da sala onde o espetáculo foi encenado com a sensação de que o que se passou ali tinha mais verdade do que o que vem se passando cá fora. Saí, enfim, com a sensação crua de que eu tinha algo a fazer e, sabendo que isso não é pouco, saí, ainda, reconciliada com o teatro, com o teatro de Belo Horizonte, com o teatro em geral.


Classe promove um giro sobre a própria linguagem, uma vez que encena o grito que deveras tem, o grito engasgado do espectador, o grito de todos e de ninguém.




Fotos de Raquel Carneiro

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