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“O cerrado só nasce depois do fogo”

por Maraíza Labanca


Fazia cópias, e nas mãos uma espécie de prece. Não se pronuncia a palavra amor em vão. A tarefa: escrever o real dos dias, suas lascas.


Partitura estendia-se como um tecido que não cessava de se desembrulhar. A tarefa: não romper as sentenças elásticas: eram elas formas vivas. Como uma presença amorosa que, a cada vez, traz o frescor quase insuportável da novidade que encarna.


A cor do cerrado não é apenas a da poeira, a da terra ou a das folhas secas, mas também: o vermelho – depois do fogo. O vermelho que, agora, tinge as letras desse livro que nasce. Partitura começou a ser escrita nessa paisagem, mais especificamente na Serra do Cipó. Depois, perdurou um pouco mais, e além, sem, no entanto, deixar de estar impregnada por essa atmosfera. Um dos títulos possíveis para o livro chegou a ser, inclusive, o estranho: Arbusto.


“Antes mesmo do papiro, o papel era a casca de uma árvore”[1]. Escrever por subtração, como quem, com as unhas, arranca cascas secas dos arbustos: essa a ancestralidade da escrita como inscrição de um corpo, outro, de um passado desenhado no futuro. Falo, sim, de uma experiência matérica, lembrando que “a matéria não mente”[2].


O cerrado é também a paisagem da infância, aquela que meu corpo reconhece e que não pára de remetê-lo a um certo desamparo. Talvez esse livro também ofereça algo dessa plumagem rasteira, desses hiatos entre uma árvore e outra, uma frase e outra, como se a descontinuidade fosse a sua natureza, em que consiste, também, sua densidade. Algo entre o deserto e a mata: cada palavra pode ser intransitiva e solitária.


O chão conduz e arrasta: há queda (“O poema é íngreme”[3]), e a verticalidade não ousa suprimir a forma da superfície que se estende (se alonga, se adia, se infinitiza) como um corpo (ou uma palavra) que se deixou cair. Aliás, se afiarmos os ouvidos, escutaremos: os verbos serrar e partir não são tão distintos assim.


E ainda: se estamos sempre a contar coisas uns aos outros, o que são essas coisas senão, no fim das contas, no fundo do que se conta (e do que se canta), sempre uma história de amor, mesmo se narramos guerras, portentosas viagens, ou se nos valemos de figuras fantásticas?


Resta, agora, uma certa biografia de uma mão que escreve (e talvez outra, que desenha e colhe folhas secas). Já não sabemos quem narra, quem fala, quem canta. Tentar colher o real dos dias perturba a estrutura da ficção, e a escrita pode seguir assim: sem concessões.


Esse livro é também uma carta de amor às coisas.

[1] Vania Baeta.


[2] Nuno Ramos


[3] Llansol.




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