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O Feminino Tempo

por Diomira Maria



O tempo é feminino, diz Janet, e demora a eternidade do entardecer.[i] Representado por fibras suspensas que ondulam sobre minha cabeça, revelam um mar de cores cambiantes: amarelo, rosa, lilás, azul. As paredes do imenso salão respondem em sombras ao movimento da luz sobre a rede de fibras que preenche o templo: o tempo.[ii]


Deito no carpete sobre desenhos que reproduzem os padrões topográficos das formas espraiadas pelo teto. Observo. Parece o corpo de uma mulher: a cintura, o peito, os fartos seios conformam um tronco feminino em constante mudança de cor... o tempo flui. Observo. Observo mais. Noto um espaço aberto nesta trama que deixa transparecer o telhado: o vazio?, um respiro? O espaço coração desse tempo mulher? O útero? É orgânico. Será um ponto de fuga? Ver através do tempo, voltar no tempo, voltar o tempo? É possível uma segunda chance? O que faríamos com uma segunda chance?


Levanto, em pé fecho os olhos. Murmúrios me avizinham. Abro os olhos, cada vez mais o azul domina o amarelo. Aguardo a noite se completar. O ciclo de variação da luz sobre a teia de fibra demora aproximadamente 30 minutos, a duração do pôr-do-sol definida pela artista.


Os seios do tempo saciam de longevidade os recém-nascidos. A morfologia das fibras revela o cuidado necessário ao caminhar no tempo, sucessão de cumes e vales, correntezas, cordilheiras, reconheço a transitoriedade da vida nas ondulações desse véu. Não nos dirige: convida a participar, a contemplar, a sentir. As nuances da luz, o tic-tac dos ponteiros, os segundos contínuos do relógio digital... tentativas de medição do tempo.


Esguia, bonita, fêmea é o tempo para Janet. Na mitologia grega, a personificação do tempo é masculina, Chronos, responsável pelo nascimento de Afrodite, a deusa do amor e da fertilidade. Janet, então, torna o tempo fértil, misterioso, feminino. Se o tempo oferece vida ao nascer, encanta com seu mágico colorido o morrer, o medo se dilui, morrer torna-se doce. O feminino acolhe o nascimento e a morte. Contemplação. Contemplação é quase morrer. Sublime. Por um instante (de tempo!) imagino que Afrodite nasceu da união de Netuno com o feminino tempo, o mar que adentra onde tudo flui, fluido a germinar o amor.


Caminho pelo salão entre as camadas de fibras suspensas sobre minha cabeça e a representação das curvas altimétricas aos meus pés. Estou entre o feminino tempo e o masculino espaço, sou o elo da fusão entre eles. Flutuo no tempo-espaço de Janet.

No canto esquerdo do salão, um piano e uma banquetinha. Muda sinfonia. Ouve-se entre intervalos o som dos equipamentos de projeção da luz que incide sobre a teia, o silêncio predomina, a voz corporal do tempo.


Pessoas visitam o salão, partículas de breve contato ou ondas que reverberam, acomodam-se no chão absortas pelo fascínio das cores, pela mutação ritmada. Imaginam que o desejo e a intensidade podem alterar a duração do tempo, fecham os olhos, viajam, são despertas pelas sombras das contrações do tempo que perpassam o templo, indefinidamente.


Sou prisioneira da dimensão criada pela artista, meus pés fixos no chão, meu olhar na imensidão azul. Aceito. Talvez a gravidez do feminino tempo seja a dádiva de uma segunda chance. O que faríamos com uma segunda chance?


***

[i] Este texto foi escrito a partir da visita à instalação de Janet Echelman, intitulada 1.8 Renwick. Renwick Gallery. 1661 Pennsylvania Avenue NW #1, Washington, DC. Maio, 2022. [ii] Menção ao título da exposição de Julia Panadés Dar Templo ao Tempo. Casa GAL – Rua Groelândia, 50. Belo Horizonte, MG. Junho, 2022.

Imagem: Fotografia da autora. Detalhe da instalação 1.8 Renwick.

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