por Igor Reyner
Necropsia
Ei, abra-te.
Deito meu corpo na mesa
morto,
meticulosas as mãos
farejam lesões, tatuagens, a cicatriz.
Enganadas,
registram circunstâncias,
percorrem os órgãos
de três cavidades:
crânio, tórax, abdome.
Não há perigo.
Não havia.
Os olhos buscam a incisão
pois não enxergam através
do revestimento — cegas mãos.
Ei! Minha pele, penso.
Beliscam um rosto. Espalmo
no chão uma estrela
morta ao longe
tão longe que não alcançam
argumentos.
Estáticos, os órgãos dizem:
não há perigo.
***
A morte ao alcance de um cuspe
o algodão doce reage
à saliva
aquela estrutura imensamente frágil
sustentada apenas
pela doçura ao entrar em contato
com a secreção
se transforma
numa estrela que nasce
para dentro
acentuadas suas cores
pregada ao céu
da boca
desfeita
***
Escarcéu
Em casa, me amarro ao mastro
à mesa, à poltrona sitiada
de livros ávidos de olhos,
de tempo,
ao piano fechado, coberto
de porta-retratos, partituras
ensebadas — num último
ensaio —
à garrafa de café
espero, atento, calado
não ouvir nada.
Fatalmente nus, os ouvidos
— se arreganham para o burburinho,
de bárbaros que não
chegam; resignam-se — vestem-se
com novas túnicas.
Fones entregam-lhes a tragédia diária,
o bode
expiatório sem
nenhum ritual.
Quero me atirar aos streamings
alive/vivo,
me deixar despedaçar pelas fúrias em bocados de
palavras pejadas de som,
urradas e costuradas ao alarido
evaporado das noites.
Navego, argonauta
ainda enlaçado,
entro em janelas diversas
onde encontro o mar
o universo
o texto
as mortes e razões
a pornografia dos peitos, pintos, bucetas, cus
ávidos de olhos,
de tempo
súbito
deparo-me com a criatura mÃtica,
tampo meus ouvidos,
é tarde, acoplados ao tÃmpano
— como eu, atado ao mastro —
os fones gritam
a nova verdade
a nova morte
o nome do medo
o nome de cada um de nós.
Não
tem forma de mulher, ou pássaro, ou peixe,
e castrada, a criatura cobiça
o escarcéu.
Tem rosto de homem, miséria
de homem
enche de ar
o peito as palavras os ouvidos
contamina aquilo que toca seu canto, a criatura.
Olho, ainda amarrado
descrente
para o céu de minha nau. Desembaraço-me
da túnica, incerto se incólume,
imune,
sobreviveremos à sereia.
***
Estado de sÃtio
Imagine um castelo, com algumas torres,
assimétrico, um átrio externo emoldurado
por estábulos e seus cavalos, a barbacã
apegada às muralhas, eu, menor que você.
Ao nosso redor um fosso sobre o qual paira
uma ponte, pátios internos, grandes,
câmaras e o salão, a nossa arquitetura
fantasiosa e a ameaça estrangeira.
A lógica das sucessões, reguladas por leis e juÃzos,
é interrompida e à porta dorme o inimigo, à porta,
um cachorro esgarçado, à porta, eu me desprego de você.
Não é a flecha, a lança ou a tocha
que matam, é o tempo sem lei,
juÃzo sem combate, a suspensão, o cerco.
Imagem: Desenho de Laura Cohen, 2013 (Arquivo pessoal do autor)