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Silêncio


por Teresa Melo


Talvez saibamos profundamente que somos imortais e que mais tarde ou mais cedo todo o homem será todas as coisas e saberá tudo.


Jorge Luis Borges, Funes, o memorioso



aquele agosto nas ilhas galegas não pedia mais do que um par de chinelos nos pés, um fio de frescura atado à cintura e um “juro que vamos viver juntas para sempre em pleno verão”. de noite, alinhavávamos as estrelas com as pontas dos dedos e cosíamos constelações. de dia, sentíamos o prazer dos banhos de ervas. era o estender, o esticar, o enrolar, o ficar inerte debaixo do sol em lume com o peito voltado para cima. a Paula e eu já vimos muitas coisas e ouvimos muitos ruídos do mundo, um afecto conquistado às águas, a erguer-se devagar para o preciso.


uma vez acordamos com pingos de luz violeta sobre as pálpebras. apesar de aturdidas, não oscilamos e entramos pela madrugada adentro com a confiança do costume. as linhas das pedras estavam mais nítidas que noutros lugares, embora o céu seguisse no seu negro. sentadas na areia amornada, inclinamo-nos para trás e descobrimos a realidade concreta do projecto dos penedos:


o silêncio.


vasto, desabitado. um silêncio fundo e específico a contemplar-se ao espelho do mar ali à nossa frente. deserto a abrir-se, sem forma, era ilimitado e invisível. cortá-lo com facas afiadas e serpentinas, e não se divide, resistindo incólume. este silêncio que não fazia força nenhuma para ser inteiro, porque na sua substância não distingue, não dualiza. aqui e ali podiam tentar os pássaros preenchê-lo, por desespero, largando sementes e raízes e argilas vermelhas. em vão. este silêncio habitava o vazio.


é que este não é o mesmo silêncio dos passos, por exemplo. esse traz sempre qualquer coisa consigo, uma volta, um compromisso, uma despedida. como chegar a esse silêncio incomensurável onde as árvores meditam?


a luminosidade projectou-se, por fim. das mãos germinavam-nos fascículos de agulhas pardas, que mais tarde seriam bosques de pinheiros. e o dia subiu.




Imagem: Frank Wilbert Stokes, Moonlight, Starlight, Atlantic Ocean, 1902

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