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Uma carta para Partitura

por Igor Reyner


Belo Horizonte (após a leitura de Partitura), 16 de fevereiro de 2019


Querida Maraíza,


Se como conversávamos há pouco, a escrita pertence ao desejo, o livro, por certo, pertence ao gozo. Se há gozo, há vida, então não deveríamos falar de morte do autor. Talvez Barthes estivesse enganado, no fundo, mesmo que ainda certo em certo sentido. Talvez o livro viva não apenas a sua vida, mas consigo, viva a vida do autor. É-me impossível deixar de ouvir a voz do autor em cada livro que leio. É-me particularmente impossível não ouvir a sua, que conheço não apenas pela metáfora do texto, mas por seu corpo afetivo, que se apresenta a cada ocasião em que nos encontramos. Se não para todos, para mim, a leitura e a escuta se misturam de modo semelhante à forma com que se fundem voz, escuta e pensamento. Embora seja capaz de visualizar imagens e digerir metáforas, meu pensamento tem o corpo de um discurso. Por vezes, desarticulado, confesso – não seriam os fragmentos de discurso do pensamento objetos parciais semelhantes àqueles descritos por Melanie Klein? O que sei, por certo, é que uma voz silenciosa me acompanha no meu dia-a-dia. Essa voz, esse escutar, esse pensar vaza para minhas leituras. Embora eu tenha lhe dito, mais cedo, ser um leitor voraz, eu não leio com rapidez. Pois o tempo do texto, eu o escuto de modo diverso. Leio com a voracidade de quem deseja, de quem busca o gozo, de quem flerta, de quem arde, de quem se apaixona ou odeia. Mas não leio com a voracidade do tempo que corrói, a voracidade de um trem-bala ou de uma bala perdida que busca, encontra e fere um corpo também perdido. Não leio com a voracidade de quem tem fome, leio com a voracidade de quem tem prazer em deleitar-se à mesa, com abuso, mas sem pressa. Esse tempo da leitura, que é meu e tão pessoal, me é dado pela voz que conta a história (a estória), pela voz que narra, que dialoga, que conversa, que hesita, que falha, que emudece. A minha escuta precisa encontrar a voz do outro, assim como a minha voz encontra a escuta do outro. Leitura-diálogo. Leitura-conversa. Leitura-interpretação. Leitura-música. Leitura-sexo. Leitura-amor. Leitura-em-voz-alta. Leitura na minha voz que se torna voz do outro. Leitura-abrigo.


Eu acho que já lhe disse que tentei ler o Grande Sertão: Veredas umas quatro vezes e desisti? O desejo tornou-se gozo apenas quando comecei a lê-lo em voz alta (depois disso o reli mais quatro vezes). Eu precisei aprender a ouvir o livro, vivo, que seguia sua própria respiração. E apenas quando minha respiração se fundiu à respiração do livro, eu pude lê-lo por inteiro, já então em silêncio. Precisei aprender a ouvi-lo e daquela experiência eu fiz minha prática. Na dedicatória com que me presenteou, você diz: “para ler em voz alta essa escuta que tentou pronunciar a palavra amor”. Segui à risca, me esquivando do amor, pois o temo, e comecei a ler seu livro em voz alta, tão alta que por vezes encontrei-me sozinho na sala, à meia-luz e ao som da chuva, discutindo comigo mesmo. É o teatro que se lê nesta Partitura, mas também a música. Artes do som, do ritmo, do tempo.


Embora sejam secas as folhas sobre a mesa, ou vazias as vagens, ou violentas as suavidades do amor, é delas que brotam as questões sem objetivo de um livro escrito sem objetivo, de um livro que deixa de ser objeto para tornar-se sujeito, dono de um diálogo, frequentemente, atônito, átono, atonal. Os diálogos travados ali, em cada voluta, se fundem como os toques insinuados, como os corpos imiscuídos, como a natureza das imagens evocadas, como as semânticas múltiplas de uma mesma palavra – por exemplo, da palavra amor. Por vezes é difícil distinguir quem diz o quê, pois nas vibrações do ar os sons se misturam e nossos ouvidos já não são mais capazes de distinguir a quem pertence o som que se escuta, o discurso, a fala. As falas se hospedam na dura, ou melhor, na pura materialidade do som, que, como agente duplo, serve aos dois ou mais interlocutores. Não se distingue, em dados momentos, quem diz o que, como quando na escrita nós já não distinguimos o que nos pertence ou o que pertence ao outro/Outro, ao nosso passado de leituras, às conversas compartilhadas. Como num cadinho em que se fundem os eus, os outros e as memórias de ambos, no ouvido do leitor atento misturam-se os muitos discursos auscultados e os percursos feitos de linhas emprestadas de histórias, poemas, desenhos, argumentos, raciocínios. A leitura em voz alta do seu livro permitiu não apenas que a metáfora se tornasse concreção, assumindo sua solidez enquanto figure of speech e não apenas de linguagem – enunciação e não apenas evocação. Nesse processo, uma frase pode, como você declama... Declara, encostar na outra, como se seu texto fosse uma hospedaria, ou um íntimo quarto de dormir, onde se ama, às vezes em silêncio, às vezes aos berros. Nos ouvidos em concha (pois assim quis nosso físico evoluir ao longo das eras), hospedamos nós mesmos e os outros. Seu livro, não por acaso, afiançado por três volutas, segura a afinação ou permite desafinar, quando conveniente ou impulsivamente, as duas (senão mais) vozes que muitas vezes são uma, um uníssono, ou ainda um harmônico, uma ressonância por simpatia, uma dissonância – é na partitura que todos esses recursos apareceriam notados para um músico. É na sua ou no seu Partitura (o gênero também oscila, e se salta aos olhos é apenas no momento, que me parece ser o único, em que o ‘elas’ emerge no texto) que toda essa musicalidade é ouvida. E se a intenção inicial era de partição, de quebra, de ruptura, é nas vozes intrincadas dos diálogos enunciados, que só são interrompidos pelas silenciosas e íntimas reflexões dos parágrafos em bloco, que a partitura se efetiva não como parte ou “cortes bruscos”, mas como uma melíflua continuidade que faz da ruptura e da quebra as pausas necessárias ao discurso musical, à criação de uma música nova. Também as interrupções e os silêncios inesperados são ouvidos. Devem ser ouvidos. Precisam ser ouvidos. É isso que dá continuidade não apenas à música das páginas (sejam elas as suas ou as de um compositor qualquer), mas também à vida. Na vida, o silêncio absoluto, como a mais absoluta ruptura, não se pode de fato ser vivido. Pois é contínuo o murmúrio de nossa própria existência, como é contínuo o ruminar de nosso inconsciente. É preciosamente nas quebras que me parece repousar a linha tênue – la grande ligne, como diria Mme Nadia Boulanger – que não permite que o respirar das vozes inquietas, vacilantes, indecisas e curiosas se disperse feito meros ecos de ruídos ouvidos ao longe. São as elipses e as reticências, os espaços vazios e os silêncios, as interrogações e o constante complementar-se íntimo, assertivo e afetivo que se estabelece entre uma e outra (mesmo que uma venha a ser a outra) que fazem das volutas o apoio necessário às cravelhas (os cravos dos instrumentos que sustentam a tensão das cordas de onde nasce a música), o solo confiável dos frontões, a cabeça-desejo de um coração-gozo que não se permite secar como as folhas sobre a mesa, ou esvaziar-se como vagens mal manuseadas, mas que, ao contrário, respira, pulsa e doa à morte aparente destas folhas, destas duras pedras, destas conchas inabitadas sua própria vontade de viver. A/s narradora/s-heroína/s de Partitura insuflam vida nas coisas aparentemente mortas, assim como o autor e o leitor insuflam vida ao livro, assim como o livro insufla vida ao leitor e ao autor, assim como o amor insufla vida indiscriminadamente.


Seu livro me parece falar de vida. O abismo estendido, disposto sobre a mesa como folhas, vagens, conchas, medos, luzes e meias-luzes, silêncio: natureza morta no olhar vivo do observador, no ouvido vibrante do ouvinte-leitor. Em voz alta, a vida da Partitura que se abre na minha frente – eu, o leitor – salta ainda mais longe. O outro me empresta sua voz como ele ou ela me empresta seu corpo. Como a ele ou a ela eu empresto meu corpo e com ele minha voz. O corpo do livro, o meu corpo, o corpo do autor, um no corpo do outro, seu corpo no meu corpo, sua voz na minha voz, sua voz na minha escuta, hospedadas, acariciadas, devoradas. O prazer do texto, mas não apenas dele, também o meu, o nosso.

Com amor,

Igor.



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